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quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Uma esperança teimosa

Uma esperança teimosa


Uma esperança teimosa
Ricardo Gondim

Antecipo-me ao dia. Antes do sol enfurecer, desperto com sede. Não consigo nomear o que me falta. Carrego uma ausência crônica. Convivo com o vazio existencial comum a poetas e profetas. Sofro de uma, ainda não catalogada, Síndrome da Nostalgia Difusa.
Minha alma não se conforma com faltas. A presença viva dos que já morreram atormenta. Quero de volta minha mãe, meu pai, o Allison. Sinto cada um deles impregnando a poesia que leio, a pintura que aprecio, a música que ouço. Digo para mim mesmo: “vou contar…”. Pego o telefone, mas antes do sinal, sei: nenhum deles existe; todos foram jogados em um fundo de armário.
Assumo a minha melancolia. Farejo cheiros em busca do tempo perdido. Sabores, fotografias, músicas guardam a magia de devolver um passado que a poeira de décadas enterrou. Visito e sofro mais.
Bisonho, saio para correr. Encaro ruas e avenidas. Varo quilômetros. Encharco de suor. Continuo inconsolável.
No crepúsculo, os olhos agoniam. Como é triste a palidez da vida. Forço um novo jeito de mirar o mundo; desejo-o colorido. Mas não consigo escapar, um sofrimento injusto e desproporcional agride. Revolvo-me numa culpa esquisita.
Sou privilegiado. Todo o meu esforço para aliviar o suplício da miséria parece pífio. Confortável, não desenvolvi senso crítico. Convivi, complacente, com uma estrutura política perversa. Acostumei-me à miséria. Ceguei os olhos da alma. Calei quando discriminavam, privilegiavam, marginalizavam. Quando compreendi, minimamente, os perigos do poder já estava exausto. Envelheço enquanto corrupção sistêmica e vícios históricos permanecem intactos.
Anoitece. Meu coração não se acalma. Uma força estranha impulsiona a desejar o que desconheço. Parecido com o Chico, murmuro (desafinado, claro):
O que será que será que tanto quero,
e que “vive nas ideias desses amantes
que cantam os poetas mais delirantes
que juram os profetas embriagados
está na romaria dos mutilados
está nas fantasias dos infelizes
está no dia a dia das meretrizes?”.
Viagens deliciosas se esgotaram (não suporto o estresse do aeroporto). Esperar a festa perdeu a graça.
Durmo com a sensação de o mundo girar na decadência. Tudo estanca na efemeridade. Dos amigos, remanesce desgaste; dos ideais, decepção; da religião, desencanto.
O coração já não se enfeitiça. Ruíram Porto Seguro, Campos Elísios, Nirvana. Somem os escombros da Cidade de Refúgio. Todo o desterro é inóspito. Não encontro sombra onde possa, calmamente, despir as estopas do lamento. Não sinto uma brisa que espalhe as cinzas do meu arrependimento.
Sobra uma esperança teimosa: eterno dever de persistir, mesmo sem motivo.

Soli Deo Gloria